terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Dom Bruno Forte: teologia, escola de humildade contra o niilismo


Arcebispo de Chieti-Vasto, Itália, analisa o pensamento teológico de Bento XVI

Por Mirko Testa

ROMA, quarta-feira, 20 de janeiro de 2010 (ZENIT.org).– Em uma época que assistiu ao ocaso de uma razão totalitária, a teologia, entendida como escola de humildade e de escuta da palavra de Deus, pode constituir um antídoto contra o sentimento de abandono , filho do niilismo.

Nesta entrevista concedida à ZENIT, Dom Bruno Forte, arcebispo de Chieti-Vasto (Itália) e presidente da Comissão para a Doutrina da Fé, Anúncio e Catequese da Conferência Episcopal Italiana, analisa as últimas intervenções de Bento XVI em matéria de teologia.

–No ano passado, na homilia da missa celebrada na presença dos membros da Comissão Teológica Internacional, o Papa explicou que o verdadeiro teólogo não é aquele que busca medir o mistério de Deus por meio da própria inteligência, mas sim aquele que é consciente das próprias limitações. Naquela ocasião, o Papa identificou na humildade o caminho para a verdade, fazendo assim uma advertência aos teólogos presunçosos que se comportam como os antigos escribas. O senhor pensa que essa advertência se referia a uma tendência própria dos nossos dias?

–Dom Bruno Forte: Acredito que este seja o ponto fundamental que distingue a teologia cristã de qualquer forma de gnose. A diferença fundamental é que na teologia, tudo nasce do ouvir, e portanto do auditus Verbi, enquanto que, para a gnose, tudo é uma produção intelectual autônoma do sujeito. Este é o verdadeiro motivo pelo qual a gnose constitui a única autêntica heresia cristã: a presunção de auto-redenção do homem, que não necessita da intervenção de um Outro proveniente do Alto, isto é, de Deus. Uma teologia fundamentada na Revelação não pode deixar de ser, acima de tudo, um ouvir, e portanto, é humilitas: uma atitude de profunda abertura e docilidade perante a ação de Deus, que se manifesta na história de maneira surpreendente, enquanto a confirma em sua dignidade, abrindo-a ao novum adveniens de sua promessa.

Um tema que Ratzinger, como teólogo, destacou repetidas vezes, e que deriva de sua leitura de Agostinho - o gênio do intellectus fidei vivido no ouvir, no uso da inteligência a serviço do ouvir a Palavra de Deus – e que também se encontra em São Boaventura. Diria que é a influência agostiniana-fransciscana que predomina na formação teológica de Joseph Ratzinger, que se manifesta em seu ministério papal na forte ênfase conferida ao humilitas e ao auditus. Acrescentaria, ainda, que esta temática é especialmente relevante nos dias de hoje, em uma sociedade que conheceu a embriaguez da razão, e portanto a tentação gnóstica, nas várias faces da ideologia moderna, e que hoje, nesta inquietude própria da pós-modernidade, se não for capaz de se abrir ao ouvir e ao humilitas, corre o risco de sucumbir ao niilismo, isto é, à ausência de sentido. Em outras palavras: quem pode nos salvar? A esta pergunta não podemos responder a não ser: o Outro que vem a nós, o Deus vivo, e isto exige humildade e espírito de acolhida. A gnose de nossa sociedade pós-moderna, na qual a razão totalizante conheceu uma crise profunda que evidenciou a necessidade de sua superação crítica, está fundamentada na mesma convicção fundamental, o absolutismo do sujeito e de sua capacidade de conhecer ou produzir a verdade.

–Em setembro de 2007, ao visitar a abadia cisterciense de Heiligenkreuz, o Papa denunciou “certas teologias que já não respiram no espaço da fé”, e buscou resgatar aquela “teologia de joelhos” – recorrendo à bela expressão cunhada por Hans Urs von Balthasar. Da mesma forma, ao evocar a figura de São Bernardo de Claraval durante uma audiência geral, Bento XVI disse que sem fé e oração, a razão por si mesma é incapaz de encontrar a Deus, e a teologia torna-se um "exercício intelectual inútil”. É este o panorama da teologia atual?

–Dom Bruno Forte: O primeiro fator decisivo é que, justamente por se tratar de ouvir a Palavra de Deus, a teologia não só necessita de um Humilitas radical, mas também de uma forma de acolhida amorosa, uma atitude de oração. Von Balthasar insistiu muito sobre este assunto, argumentando que a santidade não constitui uma condição supérflua ao exercício da teologia, mas sim uma condição fundamental. Não é por acaso que os grandes teólogos, especialmente os Padres da Igreja, também foram santos. Daí segue que a necessidade de se ajoelhar diante do mistério e ouvir, de viver o auditus não apenas com humildade, mas com amável e perseverante aceitação da fé, está na própria essência da teologia cristã. E também nesse sentido, o pensamento de Joseph Ratzinger contém não apenas as influências de Agostinho e Boaventura, mas também outra intuição muito importante, já retomada no Concílio Vaticano II: a existência de uma ligação íntima entre a vida cristã, o pensamento cristão e a liturgia.

A liturgia, enquanto Culmen et fons, como diz o Concílio Vaticano II, é fonte e ápice de toda a existência cristã, seja na vida prática ou em sua dimensão reflexa. É por isso que uma teologia sem alma litúrgica, isto é, sem a capacidade de louvar e invocar a Deus, torna-se um fútil exercício intelectual. Torna-se uma outra forma daquela gnose que ameaça poluir a capacidade humana de se abrir para Deus.

Na grande visão teologia cristã-católica, o homem foi feito capax Dei: mas essa capacidade está condicionada, por um lado, ao humilitas, e de outro, à capacidade de invocar o dom de Deus e de deixar-se mergulhar em uma atitude doxológica e litúrgica, isto é, de glorificação de Deus. Quando tudo isso é tornado palavra, é que nasce propriamente a teologia.

Há aqui outra consideração a ser feita sobre a relação entre teologia e espiritualidade. Experimentamos uma crise nesta relação na época da teologia moderna, isto é, da teologia influenciada pela contraposição iluminista entre Vernunftswahrheit e Geschichtswahrheit, verdade de razão e verdade de fato.

Na concepção iluminista, somente a verdade de razão é verdadeira, porque seria dotada de um caráter absoluto e universal, e que as verdades de fato não contêm.

O cristianismo, ao contrário, baseia-se numa verdade de fato: a revelação histórica de Deus. À época, parecia que para uma teologia de matiz iluminista-liberal, havia dificuldade em conciliar o exercício teológico puro com alguma forma de espiritualidade, que talvez devesse ser deixada para a devoção.

Este descompasso entre a teologia e a espiritualidade produziu grandes danos na era da teologia moderna, manifestados principalmente na teologia liberal e em algumas formas de modernismo católico, mas continuou a produzir danos quando, por exemplo nos anos 60 e 70, algumas formas de teologia cristã deixaram-se condicionar por ideologias revolucionárias modernas. Hoje testemunhamos, ao contrário, um movimento em direção ao estatuto fundamental da teologia, para o qual o exercício teológico consiste em trazer ao pensamento a experiência do Mistério revelado, ouvido e celebrado na liturgia, vivido e testemunhado na fé e na caridade.

Assim, a teologia não é apenas docta fides, isto é, uma fides quaerens intellectum, mas também docta caritas, isto é, o levar à palavra a experiência do amor, o dom do amor de Deus expresso na liturgia e na Graça dos Sacramentos, e que deve posteriormente ser testemunhado com gestos e com a silenciosa eloquência da caridade. Teologia e espiritualidade, desse modo, reencontram a ligação fundamental que delas faz uma teologia e uma espiritualidade cristãs. Uma teologia sem espiritualidade corre o risco de se tornar uma teologia vazia, assim como uma espiritualidade desprovida de teologia corre o risco de se tornar cega, para parafrasear a conhecida afirmação de Kant sobre intuições e conceitos.

–A adesão, por parte da Santa Sé, à “Declaração de Bolonha”, conduziu a um reordenamento global da formação teológica na Itália, com uma consequente recalibração dos padrões curriculares existentes. Para o senhor, as exigências de adaptação aos critérios de “cientificidade” não favoreceriam um abandono das concepções que pressupõem a fé na pesquisa teológica?

–Dom Bruno Forte: Esta é uma questão antiga e recorrente na história da teologia. Gostaria de apresentar duas respostas: uma de caráter histórico e outra de caráter atual, mas com um certo “sabor metodológico”. A primeira é a resposta dada por São Tomás à mesma pergunta, quando abre sua Summa Teologica com uma audácia impensável nos tempos dos Padres da Igreja. Tomás se pergunta: utrum praeter philosophicas disciplinas aliam doctrinam haberi? Isto é, não questiona a legitimidade das disciplinas filosóficas, mas sim a legitimidade da teologia, num tom absolutamente moderno que parece revindicar a autonomia da razão. A resposta que dá a questão é que a racionalidade exigida pelas disciplinas científicas é principalmente voltada para identificar causas, scire per causas, para conhecer através das conexões entre premissas e deduções. Ora, este saber a partir das causas pode ser exercido de duas formas: partindo dos primeiros princípios inerentes à ciência, das assim chamadas ciências subalternantes (ele menciona como exemplo a matemática, a qual, a partir de seus princípios intrínsecos, que não são demonstráveis – e nesse ponto Tomás já antecipa as idéias de Godel – deduz todas as consequências); e, por outro lado, há as ciências subalternas, que recorrem a princípios extraídos de outras ciências.

A esse propósito, Tomás toma como exemplo o caso intrigante da música, cujas harmonias e proporções dependem da matemática. Analogamente, diz Tomás, a teologia também depende da scientia Dei et beatorum, isto é, da Revelação. Em outras palavras, a fonte do conhecimento teológico é lumen fidei por natureza, embora, porém, em suas argumentações, tenha o mesmo estatuto epistemológico das demais ciências, e portanto, goza da plena dignidade de universitas scientiarum.

Como devemos nos posicionar hoje frente aos avanços da teologia e da epistemologia modernas? A essa pergunta, respondo fazendo uma referência àquela que talvez seja a maior das conquistas filosóficas e teológicas do século XX: a redescoberta da hermenêutica, a ciência das interpretações. Quando, há muitos anos atrás, o decano da Faculdade Teológica de Nápoles convidou para uma quaestio quodlibetalis Hans-Georg Gadamer, o pai da hermenêutica contemporânea, autor de “Verdade e Método”, um jovem estudante do primeiro ano lhe fez a seguinte pergunta: “o que é a hermenêutica”? E Gadamer, após alguns momentos de reflexão, respondeu: “Hermenêutica significa que quando eu e você falamos um com o outro, nos esforçamos para alcançar o mundo vital que se esconde por de trás das palavras, e do qual elas provêm”.

Assim, a epistemologia iluminada pela hermenêutica busca não só compreender o imediatamente perceptível, o visível, o fenômeno, o racional, mas também compreender, ou ao menos tentar alcançar, estes mundos vitais dos quais estas expressões provêm. Neste contexto, descobre-se que ciência não é apenas aquela dos fenômenos, mas que existe também um conjunto de ciências, as do espírito, que se esforçam em alacançar um “não dito”, um “não dizível”, algo que não pode ser totalmente tematizável, mas que, no entanto, é o mundo vital no qual se desenvolvem os processos humanos, os processos históricos e assim por diante.

E que há, para além, outro nível que remete àquela experiência do mistério da vida e do mundo que todos nós experimentamos, e que não pode ser reduzida a uma mera fórmula linguística ou racional. Há um transbordar do Mistério que envolve o mundo e a vida de cada um de nós, e que cada um de nós elabora continuamente na surpresa, de forma estupefata, e que apenas em parte conseguimos expressar com palavras.

Ora, uma ciência que leve a sério o espanto diante deste Mistério, que acate a possibilidade de que este se expresse sem se trair - isto é, a possibilidade da Revelação - e que faça disso seu objeto de estudo, é uma ciência preciosíssima.

Em tal dimensão hermenêutica, interpretativa da realidade, que não se atém no imediato, mas que busca sempre colher o que está para além, nas conexões profundas, a teologia se apresenta como uma ciência da qual o homem necessita para viver e para morrer, da mesma forma que necessita de Deus e do sentido da vida.

–Em 1986, falando em Brescia, em uma reunião organizada pela redação do jornal italiano "Communio", Ratzinger disse que na consciência defendida pela teologia católica, a autoridade da Igreja é vista frequentemente como uma instância alheia à ciência, no sentido de algo que limita ou até mortifica a pesquisa. Para o senhor, principalmente após o advento da Teologia da Libertação, permanece atual essa visão?

–Dom Bruno Forte: A tarefa do Magistério da Igreja não é uma tarefa regressiva, mas sim uma tarefa quase perspectiva. Em um famoso ensaio de 1953, que fez história no debate teológico, Karl Rahner, interrogando-se sobre o Concílio de Calcedônia e sua definição dogmática - a qual é obrigatória para todos os cristãos, seja qual for a sua filiação confessional - de Cristo como uma pessoa divina em duas naturezas, uma humana e outra divina, sua resposta foi muito clara: o dogma não representa um fim, não constitui uma prisão para o pensamento, mas estabelece marcos a partir dos quais não se volta mais atrás; pois, nesse caso, voltar atrás significaria, ou cair em alguma forma de arianismo, numa visão meramente humana e mundana de Cristo – na qual Cristo já não seria mais o mediador da Aliança nem Salvador – ou, em alguma forma de modalismo, ao pensar num Deus que se fez presente entre os homens, mas não assumiu verdadeiramente nossa carne mortal, não se comprometendo de fato com a humanidade.

Dizia Karl Rahner, precisamente, que a definição dogmática de Calcedônia constitui um baluarte contra o retrocesso, não contra o progresso. Ilario di Poitiers, por sua vez, foi capaz de intuir a belíssima dimensão deste discernimento magisterial da Igreja. Dizia ele: “o dogma é estabelecido por uma exigência de caridade, para auxiliar a não perder a direção, a não deixar a estrada indicada por Deus”; também seu ponto de vista é claramente perspectivo, e não defensivo ou repressivo.

O caso da Teologia da Libertação, que você mencionou, é um exemplo apropriado. As principais intervenções a este respeito, realizadas pela Congregação para a Doutrina da Fé, foram duas: uma altamente crítica, que evidenciou as limitações frequentemente associadas à dependência ideológica dessa teologia; e outra, que ao contrário, ilustrou as conquistas e contribuições positivas de uma teologia inspirada em suas bases pela caridade e pelo serviço. Acredito que, nesse episódio, o magistério agiu de acordo com o que disse Poitiers e, mais recentemente, Karl Rahner – não uma atitude repressiva que faça esmoecer a vida, mas sim de promoção da vida autêntica que apenas a verdade de Deus é capaz de infundir em nós.

Para concluir, lembrarei o trecho de João 8, 32, que João Paulo II tanto gostava de repetir, e que nos disse quando trabalhávamos na Comissão Teológica Internacional, no documento “Memória e reconciliação”: “A verdade vos fará livres”.

Assim, quanto mais se serve à causa da verdade, quanto mais o Magistério se coloca a serviço do testemunho da verdade, tanto mais se favorece a liberdade, a liberdade autêntica que confere sentido, plenitude, vida e salvação ao coração do homem.

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